A vagueza permissiva da norma penal e o poder de disposição no ato de julgar quem é usuário ou traficante uma análise de votos do julgamento do recurso extraordinário com repercussão geral nº 635.659/SP

Abstract

A dissertação teve por objetivo pesquisar os aspectos controvertidos que se apresentam na diferenciação entre traficantes e usuários de drogas pelo sistema de justiça penal, tendo como norte a análise de discurso dos ministros Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin, no julgamento do Recurso Extraordinário com Repercussão Geral nº 635.659/SP, que tem por objeto a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade do artigo 28, da Lei de Drogas, que despenalizou o porte de drogas para consumo pessoal. Realizei uma análise de discurso dos votos dos ministros. No segundo capítulo, apresento a metodologia de pesquisa, conectando a visão ontológica do direito de Eugenio Raúl Zaffaroni, com fundamento no “ser”, ou seja, como a realidade se apresenta, com a perspectiva deontológica de Luigi Ferrajoli, que busca o “dever ser”, pautado pelo sistema abstrato de ideal normativo, e destaquei a importância do estudo de discursos jurídicos. O terceiro capítulo é dedicado à descrição do usuário de drogas pelo artigo 28, da Lei nº 11.343/06 (Lei de Drogas), identificando a subjetividade e a seletividade na escolha do usuário pelo sistema normativo. No quarto capítulo demonstrei os critérios utilizados pelo sistema de justiça para diferenciar os usuários dos traficantes de drogas, por meio da influência dos fatores histórico, social e econômico na formação estrutural do próprio sistema de justiça. Busquei demonstrar o reflexo dessa carga valorativa na identificação e diferenciação desses indivíduos e como a ausência de taxatividade normativa permite que os juízes utilizem do seu poder de disposição como instrumento de manutenção de um sistema desigual. E no quinto capítulo, aplicando a metodologia de análise de discurso de Eni Orlandi, tracei um breve relato do histórico pessoal, acadêmico e profissional dos ministros Moraes e Zanin, como forma de facilitar o entendimento da carga axiológica trazida nos argumentos apresentados. Ao analisar os votos proferidos, verifiquei que ambos os ministros identificaram os mesmos problemas na aplicação do dispositivo legal, que possuem raízes na ordem social e jurídica. Contudo, os ministros proferiram votos divergentes. De um lado, nota-se a uma interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, com ênfase nos efeitos práticos a aplicação da norma, fundada no “ser”. Do outro, preso à lente do “dever ser”, há uma preocupação em não incomodar o Poder Legislativo, respeitando a opção do legislador, ainda que para isso seja necessário ignorar os efeitos da lei e da ordem na sociedade e na segurança nacional.

This dissertation explores the controversial aspects of distinguishing between drug traffickers and users within the criminal justice system. It centers on a discourse analysis of Ministers Alexandre de Moraes and Cristiano Zanin during the judgment of Extraordinary Appeal with General Repercussion No. 635.659/SP, which evaluates the constitutionality of Article 28 of the Drug Law, which decriminalized the possession of drugs for personal use. The study conducts a detailed discourse analysis of the ministers' votes. The second chapter presents the research methodology, integrating Eugenio Raúl Zaffaroni’s ontological perspective, which focuses on the "being" (how reality is presented), with Luigi Ferrajoli’s deontological perspective, which seeks the "ought to be" based on an abstract normative ideal. This chapter underscores the significance of analyzing legal discourses to understand judicial decision making. The third chapter examines the definition of a drug user under Article 28 of Law No. 11.343/06 (Drug Law), highlighting the subjectivity and selectivity in how users are defined by the normative system. The fourth chapter investigates the criteria employed by the justice system to differentiate between users and traffickers, considering the influence of historical, social, and economic factors on the structure of the justice system. It illustrates how these value-laden criteria and the lack of normative precision enable judges to use their discretionary power, thereby perpetuating an unequal system. In the fifth chapter, employing Eni Orlandi’s discourse analysis methodology, the personal, academic, and professional backgrounds of Ministers Moraes and Zanin are briefly reviewed to aid in understanding the axiological content of their arguments. The analysis reveals that, although both ministers recognized similar issues with the legal provision, their votes diverged. One perspective adopts a systemic interpretation of the legal order with emphasis on practical effects and the "being" perspective, while the other, guided by the "ought to be" perspective, demonstrates a reluctance to challenge the Legislative Power, adhering to the legislator’s choices despite the law's broader social and national security implications